DO AMOR EM VIDRO: ANTÓNIO MARIA LISBOA

Virgínia Boechat


1. Introdução

Ama como a estrada começa.
Mário Cesariny

        Falar sobre Surrealismo implica delinear, antes de tudo, uma trajetória em meio aos vários e vastos sentidos que essa palavra compreende. O termo foi criado em Paris por Apollinaire, em 1917, para descrever um balé e uma peça de teatro. Em uma homenagem póstuma a seu criador, André Breton e Philippe Soupault assimilaram-no, como narra Breton no “Manifesto do Surrealismo”, de 1929, para nomear seu movimento, seu “novo modo de expressão pura”, que precisava ser compartilhado com amigos (Breton, 2001: 39).
        De fato, o Surrealismo tornou-se um amplo movimento de vanguarda, que, irradiado a partir, principalmente, da França, acabou por originar diversas manifestações afins em outros países.
        Em Portugal, apesar da existência de vários ecos, marcando já a influência do movimento francês, o surgimento de uma corrente de vanguarda sob o signo do Surrealismo foi tardio. Data de 1947 o início de atividades coletivas diretamente geradas pela proposta de Breton, com o aparecimento do Grupo Surrealista de Lisboa.
        A esse tempo, a denominação de surrealista já havia passado a designar principalmente uma atitude perante o mundo, não só artística, mas que se estendia ao âmbito da vida social, política, pessoal, como valor a ser afirmado nos homens e pelos homens. Não podia mais ser aceita a separação entre o vivido e o criado, entre realidade e sonho, ou imaginação. Uma grande busca precisava ser empreendida no sentido de restabelecer a continuidade entre o homem e o objeto – ou mundo.
        Por divergências internas, o movimento português se viu fragmentado, o que resultou, então, no nascimento de Os Surrealistas, também denominado como Grupo Dissidente. É nesse conjunto que tem ação António Maria Lisboa, poeta que destacamos por ser, entre os outros, um dos que apresentam mais traços surrealistas em sua poesia.
        Além de ter participado das experiências coletivas do Cadáver Esquisitoi , podemos reconhecer em sua obra poética individual técnicas surrealistas por excelência, como a escrita automática ou o inventário, além da utilização de imagens extremamente insólitas, criadas a partir da livre associação. Todas essas características da proposta bretoniana encontram lugar na poesia de António Maria Lisboa, costuradas, por vezes, por uma ironia extremada, que pode atingir o humor negro.
        As preocupações fundamentais surrealistas portam-se como pilares da obra poética de A. M. Lisboa. Sua via principal segue rumo à liberdade do homem. Elementos como o amor, o sonho, o humor, o exótico e o esoterismo surgem na sua poesia como meios de atingir a libertação total, levando-o, pela transcendência de uma noção rasa de realidade, a atingir uma vida plena, da qual se encontra exilado. A busca por essa “Verdadeira Vida de que nós somos os abortos”, para António Maria Lisboa, ganha âmbito de uma viagem iniciática empreendida através de sua poesia (Lisboa, 1977: 23).
        Pouco presente entre os artistas do movimento português, toda uma face ocultista, esotérica, ligada à magia e à alquimia, tem na poesia de A. Lisboa um dos mais sérios tratamentos, já que vistos como instrumentais para a ascendência humana. Longe de buscar uma transcendência exterior, em uma figura divina ou plano superior externo, essa ascendência tem o sentido interior de, por uma espécie de gnose, conseguir atingir o estágio da vida em plenitude. Tão somente esse é o sentido do esotérico também no Surrealismo de Breton.
        Para António Maria Lisboa, o poema é um laboratório, um espaço, propriamente dito, de experimentação e manipulação dos elementos, por meio da alquimia da linguagem. É onde se forja a vida para que a vida exterior seja ultrapassada na sua própria destruição / construção, para que enfim a desejada transmutação leve à metafórica pedra filosofal, capaz de instaurar a liberdade tão desejada. Na poesia, ressurge, então, com novo sentido, esse conceito da alquimia que, de certo modo, é cercado de mistério e indefinição, mas que, dentro de sua vasta possibilidade de interpretações, está ligado à possibilidade da transmutação do “vil em ouro, sendo o objetivo essencial (...) a obtenção do ouro, símbolo da imortalidade” (Waldstein, A. Os segredos da alquimia. Apud. Machado, 1991: 57).
        Para melhor compreendermos as experiências de António Maria Lisboa nesse laboratório textual, dividimos este estudo em três partes gerais, que se organizam em torno do amor, o grande elemento libertador. O diálogo entre a poesia e as propostas do Surrealismo bretoniano é um dos pontos fundamentais para a compreensão dos percursos desse poeta rumo ao conhecimento primordial.
        Primeiro vem “A espera”, em que, direcionados principalmente por “Erro próprio” e “As cinco letras em vidro”, fazemos uma incursão através dos sentidos e da importância que desejar, conceituar e classificar o amor podem ter na poesia de António M. Lisboa, assim como na proposta de todo o Surrealismo.
        Depois está “A mulher”. A. M. Lisboa nos guia através das faces possíveis e impossíveis – se é que cabe ii aí esse antagonismo – dessa mulher como ser amado. Essas faces podem ser clareadas pelas formas, adjetivações e classificações que Breton concedeu à figura feminina.
        Por fim, está nessa fusão dos contrários “O encontro”, a plenitude. Como a união não aparece nesse laboratório é o que procuramos apreender nesse autor, destacado por uma das obras poéticas com mais características surrealistas de Portugal.

2. A ESPERA

        A vida humana não está realizada em sua totalidade. Essa é uma idéia fundamental na obra de António Maria Lisboa. Em “Erro próprio”, ele projeta em um porvir a vinda dos “Novos Amorosos”, quando a existência, então, poderá alcançar sua plenitude original perdida:

(...) num dia próximo (...) hão-de aparecer revestidos de plumagem de pássaros numa cratera minúscula aberta numa flor. (...) E assim até que a Verdadeira Vida de que somos abortos seja erguida sobre os alicerces de que eles são os portadores

Lisboa (1977: 23)

        Dessa conferência, espécie de manifesto, podemos compreender como esses “Novos Amorosos” representam a redenção da vida, em uma projeção quase messiânica de um tempo futuro, esperado, desejado. A existência humana, sem essa chegada, é identificada como uma potencialidade morta, limitada pela vida cotidiana (suas exigências, suas convenções), extremamente ancorada na noção restrita de realidade como realidade objetiva.
        Na conferência, Lisboa inicialmente narra, em primeira pessoa, a passagem em que alcança um outro grau de relação com o mundo, em uma espécie de iniciação, culminada no momento em que desce a “escada de substância desconhecida” atravessando o Lago de “Brilho novo e desconhecido”:

Desci as escadas.
Do lado direito a Lua, do lado esquerdo o Sol, ao centro o Fogo dos Séculos. (...)
Depois tudo se desvaneceu.
Lisboa (1977:25).

        Do episódio, a memória lhe foi tirada; apenas duas coisas restaram: o nome e ausência de um anel, que será devolvido algum dia. Nessa alegoria, dois pontos relevantes da obra de António Maria Lisboa saltam aos olhos, o amor e o esoterismo, extremamente relacionados entre si, nesse universo poético.
        No Surrealismo francês, Breton já tinha colocado o amor e as práticas esotéricas como caminhos convergentes aplicados nas atividades de investigação do movimento. O amor surrealista atinge o âmbito de uma atitude, uma ética, revelando “no indivíduo a omnipotência do seu desejo, portanto, do seu ser” (Durozoi & Lecherbonnier, 1972: 208). Foi muito difundido entre os jovens artistas do grupo dissidente português o conceito bretoniano de l’amour fou, consagrado em português como “amor louco”, que em outras traduções possíveis seriam amor “desmedido”, “imenso” ou “fanático” – o conceito compreende todas. Principalmente na poesia de Mário Cesariny e António Maria Lisboa, foi este um traço predominante. Vivenciar esse “amor louco” tornou-se uma busca incessante no Surrealismo em geral, já que elevaria o homem a seu próprio conhecimento.
        Nesse amor pleno, o corpo é via para alcançar o supra-real, para reconciliar o homem consigo mesmo e com a natureza, promovendo-o a um estágio de vidência.
        Desde Breton, também o esoterismo, no mesmo sentido de despertar um estágio de maior consciência, ganhou pontos de tangência com o Surrealismo. A prática esotérica e a busca pela maneira de funcionar do pensamento convergem-se. Ambas fazem o homem sair dos limites dados pela razão e ambas não vêem o ser humano como definido e estático. A alquimia, principalmente, ganhou espaço privilegiado pelas identidades possíveis entre suas propostas e as do movimento surrealista.
        A tradição de escrita simbólica, o uso da alegoria, as técnicas simultaneamente entendidas como místicas e empíricas aproximam a alquimia e o surrealismo, na direção de restabelecer a perfeição original, pelo culto da “Grande Obra”, pelo “esforço de regenerar a matéria e os seres”. O transcendente é que mudou de direção, passando a ter sentido interior ao homem (Durozoi & Lecherbonnier, 1972:14).
        Na própria alegoria de António Maria Lisboa vemos a presença gritante de imagens diversas ligadas à alquimia, ao ocultismo, à magia. Sua visão através do lago lembra a Tábua da Esmeralda de Hermes, da tradição alquímica: “O sol é seu pai, a lua é a mãe. O vento trouxe em seu ventre. A terra é seu nutriz receptáculo” (cf. Machado, 1991: 62).
        De sua viagem alegórica, o narrador de “Erro próprio” trouxe tanto o instinto de ausência do “anel”, representando a aliança originária perdida, quanto um “nome”, como possibilidade de recuperar essa aliança, por meio do reconhecimento. “Sagir” é o nome, que figura como a mulher-mãe, indicando o retorno à unidade, à plenitude da existência. O restabelecimento dessa unidade só é possível pelo encontro / reencontro, pela reconciliação através do amor integral com essa mulher. Reconhecê-la é fundamental.
        Enquanto o encontro não se dá, o enorme cansaço da vida cotidiana, limitada pelas dicotomias da noção de realidade, impossível de ser tomada inteira, expressa-se no texto-manifesto de António Maria Lisboa:

A liberdade do espírito é incompatível com o seu aprisionamento. Qualquer balança é sempre falsa e eu estou farto de ser roubado. É este desejo profundo, a necessidade de expressão total e de total realização, de Amor verdadeiro e Livre, (...), que fez surgir o nosso espírito e com os nossos actos este Movimento Poético (1977:29).

        Da procura por liberdade e amor é que nasce a poesia. No Surrealismo, que os tem como elementos fundamentais, toda a poesia é destruição / recriação na busca de vivenciar esses elementos. Toda a poesia vai ser a negação da vida, no intuito de destruí-la, reerguê-la como linguagem poética, em um novo espaço de vida. E essa poesia vai ter o caráter laboratorial que toma a arte modernista. Pela alquimia do verbo, que Breton assimila de Rimbaud, é possível atingir o ponto de síntese, o conhecimento original, a realidade integral.
        A consciência do texto poético como um lugar para a experimentação, manipulação e transmutação expressa-se em grau extremo no poema “As cinco letras em vidro”, de A. M. Lisboa. As experiências e operações com a linguagem acontecem no espaço delimitado de um tubo de ensaio, das cinco letras – poema. Ali aplicam-se as fórmulas surrealistas da transmutação.

para tudo se passar como no pássaro
para deixar objectivamente escrito
nas margens do rio

do Mar
– o continente submerso
– o navio de todos os amantes
por onde rola a carruagem em que viajamos
pintada de Liberdade e de Poesia
contigo a dormir sobre o meu peito.

        Nessa viagem, expressa no inventário e nas imagens insólitas pela livre associação, o amor, “navio de todos os amantes”, é a via, o meio de transporte propriamente dito; é onde é possível a fusão no verso “contigo a dormir sobre o meu peito”. Assim como em “Erro próprio” é o nome que abre a possibilidade do reencontro com a mulher reconciliadora, no poema também só é possível achá-la pelo signo, que, como um selo, a identifica:

fixou-se no muro da tua residência
sobre a porta que se abre ao visitante
um símbolo mágico da cabala
– a oportunidade do meu regresso
– a história maravilhosa que te direi na viagem.

        Todo o poema se constitui na tentativa desse regresso; guiado pelo signo, impulsionado pelo amor, revestido de liberdade, o sujeito poético é um verdadeiro mago. Articula seus inventários, o do “Tratado de Magia Humana” e o do “Jogo de Cabalas”, e a alquimia possibilita-se graças ao “meteoro da transformação” gerado “na primeira grande noite mágica que nós tivemos”. Como a pedra filosofal, esse meteoro é o elemento que faz a magia dentro do texto, no decorrer da história maravilhosa que é essa própria viagem.
        Aparições são resultados das experiências. Em sua inerente ambigüidade, surge o “Falo”; e os poetas surrealistas, aproveitando-se dessa ambigüidade, casam nele concretamente erotismo com poesia. A esse aparecimento relacionam-se os de Freud e de Lautréamont. E, principalmente, surge a figura da mulher.

3. A MULHER

        A mulher é, na obra de António Maria Lisboa, o elemento capaz de conferir a existência una, integral e verdadeira. Sem ela não há ascendência, conhecimento, ou reintegração da sua existência original. Em “Erro próprio”, fica explícita a memória dessa ausência. Está no anel a ser devolvido e no nome como caminho. Essa é a mulher-mãe, que aparece no texto, e “que unida ao homem realizará destino idêntico” (1977:.25).
        O amor, assim como para os surrealistas franceses, toma para A. M. Lisboa a forma iniciática. Nessa travessia, como apontam Durozoi e Lecherbonnier (1972: 219), “a mulher será a mediadora da salvação terrestre, o casal, a promessa da sua realização”. Como no amor eletivo do surrealismo francês, há na poesia de Lisboa uma idéia de metade apartada, e a ele destinada a ser conciliada. A idéia da mulher eleita implica, no entanto, uma inevitável espera.
        As mulheres ganham para os surrealistas franceses a forma de fadas, capazes de conter em si, e revelar, o segredo do mundo. Instaura-se a imagem da mulher-criança, capaz de, unida ao homem, fazê-lo vencer o tempo, já pode desarticular qualquer sistema a sua volta. Mas, movido por uma sede de Absoluto, pela busca da origem, para António Maria Lisboa, a mulher eleita é a mãe, não a menina. Só na reunião com a mulher-mãe poderá alcançar a verdadeira plenitude de sua existência, como denota sua alegoria em “Erro próprio”.
        Mas em muitos poemas, a mulher ganha uma face mais fatal. Se a menina-mulher reúne em si o amor carnal, ideal e espiritual, a mulher que surge muitas vezes é mais próxima somente do carnal.
        No poema “As cinco letras em vidro”, a mulher aparece no início, constituída por imagens insólitas:

É um estilete de luz
a imensidade de que és feita
e contorna um azul-sonho-neve
igual aos cabelos que descobri a saírem da tua boca

– dos teus olhos de inquietação
– dos teus lábios curvos de aurora

        No fim do poema ocorre sua aparição. Nesse momento ela é mais concreta, descrita como “escandalosamente vestida de vermelho”. Essa mulher está mais ligada ao âmbito carnal, longe da idéia completa de mulher eleita e longe da mulher do começo do poema, que o acompanha como ideal e motivo de busca. A mulher dessa aparição pode, no entanto, ser ainda um caminho para a mulher eleita. A possibilidade fica em aberto no poema.
        No “Segundo Manifesto”, Breton nega a prática do prazer pelo prazer. Se o erotismo é fundamental no “amor louco”, só tem sentido na união carnal somada à espiritual. Na idéia de “sublime”, a união dos corpos e o êxtase representam a ascensão moral e espiritual capaz de reintegrá-lo.
        A figura da mulher-criança, de Breton, como lembram Durozoi e Lecherbonnier (1972: 220), pela “infância”, é uma espécie de Alice no país das maravilhas, “participa ainda do mundo pré-lógico (...) guarda ainda ‘recordações’ das grandes forças naturais que a conduziram à existência”. A mulher, assim, também está em estado de espera por esse homem, que a transformará, fará também a iniciação dela. A iniciação, assim como a eleição, é recíproca.
        Em “Erro próprio”, essa “infância” está no narrador, no homem. Ao retornar ao “Parque que existe na localidade e onde na minha infância fui REI” é que ele permite que tudo comece a se modificar. Ele conta sua estranha aventura, como se entrando em outro universo, mais próximo do de Alice. No texto, ele assume o papel de ser iniciado pela mulher-mãe. A imagem de um menino habita ainda muitos poemas de António Maria Lisboa, além do “Erro próprio”.
        Reencontrar essa mulher primordial, a mulher-mãe, é estar inteiro novamente, é ser possível a “Verdadeira Vida”, de homem conciliado com o universo, restabelecido em sua plenitude, absolutamente livre, como na existência primordial perdida. Fora dessa existência, o que há é o erro próprio de cada homem.

4. O ENCONTRO

        Se o Surrealismo existe como atitude, na vida assim como na arte, todo seu esforço é convergente no objetivo de efetuar a ascensão da consciência humana ao grau extremo. Breton, no “Segundo Manifesto”, reafirma essa busca a esse estágio:

Existe um certo ponto do espírito de onde a vida e a morte, o real e o imaginário, o passado e o futuro, o comunicável e o incomunicável, o alto e o baixo deixam de ser percebidos como coisas contraditórias. Ora, seria falso atribuir à atividade surrealista qualquer motivação que não fosse a esperança de determinar esse ponto (2001: 154).

        Inscrições da alquimia, da Tábua da Esmeralda, da tradição alquímica ( que teria sido gravada por Hermes) falam também sobre esse estado de consciência sobre a verdade, em que

O que está em baixo é como o que está no alto, e o que está no alto é como que está em baixo; por essas coisas fazem-se os milagres de uma só coisa. E como todas as coisas são e provêm do UM, assim todas as coisas são nascidas desta coisa única por adaptação (cf. Machado, 1991: 63).

        Para António Maria Lisboa, o ponto de ascensão do homem diz respeito a seu retorno a uma vida originária, inteira, em que será conciliado com a natureza e com a consciência plena. Trata-se de experiência imanente do homem. Sua poesia é, como para todo o Surrealismo, o esforço de atingir esse estado de consciência. E dessa nova consciência torna-se possível a vivência da realidade inteira, incluindo todas as suas formas de real, como o sonho e a imaginação.
        O amor é o que possibilita esse retorno. Na fusão dos contrários, de seus corpos, de seus espíritos, de suas consciências, é que se torna possível reviver a existência uma. Na poesia de A. M. Lisboa, a mulher que possibilita essa síntese é a mulher-mãe. Seu encontro com o homem gera uma terceira existência, que remete ao ser Andrógino, mas sua vitória sobre a matéria é a integração com o universo.ii
        Na proposta abjeccionista, presente na poesia de António Maria Lisboa, esse ponto de síntese é, no entanto, não um ponto final e estático, mas o início de novos possíveis antagonismos. Essa proposta constitui-se pelo choque, pelo nojo, pelo inesperado, como toda busca por uma destruição / reconstrução.
        A poesia de António Maria Lisboa constitui-se nessa busca. No laboratório mágico do texto os ingredientes são misturados e articulados. O esoterismo, a magia, a alquimia, o humor negro, todos os elementos são trabalhados em torno da descoberta desse ponto de união. Esse ponto fica, no entanto, somente projetado a um futuro ou a um passado. Existe como um fio de memória ou uma esperança. A poesia nasce desse esforço.

5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRADLEY, Fiona. Surrealismo. São Paulo: Cosac & Naify, 1999.

BRETON, André. Manifestos do Surrealismo. Rio de Janeiro: Nau Editora, 2001.

CORREIA, Natália. O Surrealismo na poesia portuguesa. Europa-América, 1973.

DUROZOI, Gérard & LECHERBONNIER, Bernad. O surrealismo. Coimbra: Livraria Almeidina, 1972.

LISBOA, António Maria. Poesia de António Maria Lisboa. Organização de Mário Cesariny. Lisboa: Assírio e Alvim, 1977.

MACHADO, Jorge. O que é a alquimia. Brasiliense: São Paulo, 1991.

MARINHO, Maria de Fátima. O Surrealismo em Portugal. Lisboa: Imprensa Nacional - Casa da Moeda, s/d.

MARTINHO, Fernando. Tendências dominantes na poesia portuguesa da década de 50. Lisboa: Edições Colibri, s/d.




iJogo verbal e visual inventado pelos surrealistas cujos resultados eram regularmente publicados na revista La Révolution Surréaliste.
ii A figura do Andrógino Hermético integra a tradição da alquimia, “como uma alegoria da Grande Obra (...) simboliza a redenção do casal alquímico, pela união dos opostos, e sua vitória final sobre a matéria.” (Machado, 1991, 59)